entrou-me um raio de um trovão em casa, pela chaminé da cozinha. destruiu tudo em quanto tocou e por pouco não me atingiu a mim, por pouco não me deixou estendida no chão, inerte, imóvel.
entrou um raio de um trovão em casa, pela chaminé da cozinha, e isso trouxe a nostalgia de uns tempos passados que desejava não existirem.
entrou um raio de um trovão pela chaminé da cozinha que me fez lembrar de ti, nas noites em que chegavas, já tarde, quase de dia. fez-me lembrar da tua pessoa alterada pelas substancias que a raça humana teve necessidade de inventar para se tornar mais - ou menos - humana. da mesma maneira que o raio do trovão me destruiu o telefone, as jarras de flores que gosto sempre de ter, também tu destruíste o que me levou quase a vida inteira a reunir. as fotografias da nossa vida aparente e
momentaneamente feliz e paradisíaca, penduradas um pouco por todas as paredes, deitadas ao chão. todas.
entraste em casa, bateste com a porta, e logo aí me acordaste. fizeste gestos que nunca assumiria como teus. tu estavas ali, mas não eras tu. entraste, irritado, e amaldiçoando alguma coisa que nunca cheguei a perceber o que era. acendi as luzes e tu estavas encostado à porta da sala, pendurado na porta da sala. acendi as luzes todas, apesar de me custar abrir os olhos. lançaste-te na minha direcção, cambaleando furiosamente, grunhindo com ódio e eu não percebia o porquê. o porquê do teu ódio, o porquê de estares assim. lançaste-te a mim, agarraste-me como nunca me tinhas agarrado.
tu querias usar-me. usar-me como tinhas prometido que nunca ias usar, usar-me como um objecto que está lá para ti. começaste querer tirar-me a roupa mas eu não queria. eu não queria ser o teu objecto de diversão, muito menos estando tu no estado em que estavas. atiraste-me para o sofá e caíste em cima de mim. e eu disse para mim mesma: 'não vais deixar isto acontecer'. empurrei-te para o chão. 'não quero ser usada por ti' gritei eu com toda a força que tinha. gritei uma e outra vez. e tu, tentavas sempre usar e abusar de mim sem eu querer. empurrei-te para o chão com mais força ainda. com a força suficiente para que tivesse tempo de me levantar e sair dali antes que tu tivesses tempo de me agarrar novamente. fugi para o quarto, fechei-me lá dentro. ouvia a casa calma, como depois do raio me ter entrado na chaminé da cozinha. ouvi todo o silencio que a casa carregava. esperei que se fizesse dia, já que não faltava muito. não te ouvia, não te sentia. saí do quarto. não estavas à porta, não estavas no corredor. comecei a sentir um arrepio espinha a cima. entrei na sala, ainda com todas as luzes acesas, e por fim vi a razão daquele silencio, de toda aquela calmaria.
estavas tu, livre de toda aquela raiva que trazias. estavas tu, livre de todas aquelas acções que não te eram normais. estavas vazio daquilo que tinhas sido, há poucos minutos, daquilo que sempre foste. tinhas um fio de sangue a sair-te da boca, um rio de sangue a sair-te da cabeça inanimada. e eu via que faltava um bocado da nossa mesa de vidro que eu não gostava nada mas que tu adoravas. cheguei ao pé de ti, na esperança que fosse só mais uma das tuas partidas de muito mau gosto, mas não. toquei-te com muito receio de que acordasses e fosses o mesmo e há pouco, com muito receio de que estivesses muito frio e que não voltasses a acordar.
estavas frio. frio como nem as minhas mão ficavam quando andava com as mão fora dos bolsos no inverno. larguei uma lágrima. outra. outra. outra. muitas, seguidas.
tive que te dizer adeus de uma forma má.
e o que me custou mais, foi que tu te despediste de mim de uma forma que eu nunca vou esquecer por ter sido tão má.
despediste-te quebrando a tua maior promessa.
adeus, que este adeus é merecido.