30.4.10

senti que aquele fora o teu último jantar. mesmo antes de me ir embora vira a morte a passar pelos corredores já vazios de ti e vi-a observar-te, a ti, ao teu sorriso. morreste nessa noite. e pareceu-me tão familiar a tua morte, desculpa dizer. voltei no dia seguinte porque tinha um pressentimento que não te encontraria. encontrei o teu corpo, mas já não eras tu. e nunca esquecerei o silencio daquela casa que já não tinha ponta de vida. o silencio pesado da morte quebrado unicamente pelo barulhos dos poucos carros que passavam lá fora. fiquei em pé ao lado da tua cama, ainda esperançada que abrisses os olhos. antes de ter coragem de te tocar abri as cortinas e as janelas. observei a tua cara serena. estavas feliz e em paz, que eu sei. há muito que querias que isto acontecesse. e quase que não tive coragem de me aproximar mais da cama. encostei-me à parede e escorreguei até ao chão. estiquei as pernas abertas como fazia quando era pequenina, enquanto tu dormias e julgavas que eu estava ao teu lado a dormir também. fiquei assim muito tempo. entardeceu, anoiteceu e eu ainda sem coragem para te tocar e realmente verificar que estavas morta. mas tinha que ser, e eu sabia-o.
passei a noite toda à espera de ter coragem de te tocar e de te sentir fria e morta.
o sol levantou-se de novo e eu levantei-me com ele, abri as janelas de casa e deixei que as cortinas voassem ao contrario do que tu gostavas, desculpa. voltei ao teu quarto e mantive-me à porta. não queria, mas tinha que ser. aproximei-me, em passos lentos. aproximei-me da tua cama que agora já não era tua. aproximei-me do teu corpo que agora já não era teu. estendi o braço, abri a mão por cima da tua cara.
toquei-te.
estavas fria, como sabia que ias estar mas como eu não queria que estivesses, como eu não queria acreditar que estivesses.
arrepiei-me.
de repente, tive a sensação de te ver sorrir, apesar de tudo. vi a tua expressão mudar. acho que nunca te tinha dito:
gosto muito de ti
disse-te nesse momento que já era tardio. 'mais vale tarde que nunca' mas aquele momento já tinha passado para lá do tarde, para lá do nunca. depois chamei alguém que me pudesse dizer o que podia fazer, aquela era a minha primeira morte. vieram buscar o que restava de ti mas que já não era teu. já não era de ninguém. morreste.
e eu tinha-o sentido mesmo nesse último jantar. tinha sentido que seria o último. e, afinal, foi mesmo.
adeus, dorme bem, bons sonhos.

escrito por: Francisco da Maia

28.4.10

concurso ou não concurso?

22.4.10

desci à cozinha ia a tempestade a começar. não sei se lá fora ou cá dentro deste único espaço que cada vez mais deixa de me pertencer. tinha a casa mergulhada no escuro interrompido pelos relâmpagos de uma chuva tempestuosa. descalça ,senti a tijoleira fria do chão da cozinha. fiquei parada à porta da cozinha a pensar em ti, a ver a tempestade que tanto me inquietava, pela janela, lá no fundo. que medo que me dá esta tempestade. virei costas à janela para abrir a porta do frigorífico. tirei o sumo e bebi, ainda com a porta aberta. olhei a cozinha agora iluminada pela luz fraca - quase tão fraca como eu - do frigorífico.
sinto a tua falta e tu não vens.
aproximei-me da janela ainda fechada e desejei como nunca ver-te a chegar. ver a tua sombra, ver o teu caminhar. esperei, esperei, passei muito tempo à espera. abri a janela, chamei por ti, fechei os olhos e gritei o teu nome. mais do que uma vez. cantei o teu nome à chuva, à luz e ao céu. a tudo aquilo que estava a acontecer. perguntei ás nuvens o que era de ti, perguntei às gotas que escorriam nos vidros da casas, perguntei às casas que deixavam com que essas gotas escorressem sobre elas, perguntei aos gatos escondidos debaixo dos carros e perguntei às pedras do chão: ninguém sabia, nada sabia. percorri com o olhar o território que me pertencia, todo aquele que eu via: nada, em parte nenhuma.
fechei a janela, que entretanto tinha aberto. subi as escadas do pódio dos sofridos, fiquei em primeiro. subi mais um pouco e saí ao terraço. em segundos houve uma fusão das tempestades que há pouco me pareciam tão distintas. abracei-me às nuvens e apertei-as muito de tanta raiva tinha da tristeza de tu não vires. juntei o meu corpo às nuvens que descarregavam no chão que também era eu, juntei-me às casas, aos gatos, às gotas, à chuva. descarreguei tudo em tudo. e também procurei por ti tão longe quanto podia fui até onde as nuvens se estendiam e até onde o vento - que era pouco nessa noite - me levou. cansei de procurar e de descarregar em mim própria o facto de tu não estares. deitei-me no chão cansado e gasto, cansada e gasta. a tempestade amainou e começou a amanhacer. veio o sol.
ficarei à espera.

11.4.10

e eu esperei por ti, no silêncio ensurdecedor daquela paisagem que se abatia por baixo de mim. eu esperei por quem não prometeu vir, numa tarde fria. olhei mais uma vez para o vazio. o vazio que era a falta de quem não estava. tentei lembrar tudo na minha cabeça, mas não havia nada para lembrar realmente. nada do que se passara passara realmente. tudo fora minha imaginação, no fim de contas. ouvi o silêncio mais uma vez. o pesado silêncio que a paisagem fazia, o barulho que não suportava mais ouvir, aquele silêncio.
esperei.
como observei o sol e a sombra, cada dia do tempo em que tu estavas ainda para vir. como vi o ciclo repetir-se dia a dia. como fiquei sentada ali, naquele lugar que já se fartava da minha espera por ti. e observei mais uma vez a paisagem, com os olhos abertos. depois fechei-os, continuei a vê-la. estava já tão habituada. ouvi o silêncio pesaroso mais uma vez. vez essa que desejei ser a última. tapei os ouvidos, baixei a cabeça.
deixei-me cair, sem ver a queda.
quando vieres, já será tarde.
adeus.